domingo, 26 de junho de 2011

Rodolpho Theophilo: a construção de um romancista (resumo)

Autor: Charles Ribeiro Pinheiro[1].
Orientador(a): Profª. Drª. Odalice Castro Silva[2].

   Esta dissertação, intitulada Rodolpho Theophilo: a construção de um romancista, realizou uma investigação da formação intelectual e literária do farmacêutico e escritor Rodolfo Teófilo (1853-1932), verificando como ocorreu o seu amadurecimento como ficcionista, durante a década de 1890, desde a sua estréia com o livro A fome até o romance O paroara (1899). Para este intuito, situamos, de maneira crítica, o referido autor em sua conturbada época e espaço social: a Fortaleza da Belle Époque.
           Para o propósito da nossa pesquisa, foi necessária uma análise do contexto de Rodolfo Teófilo, pois entendemos que o escritor desenvolveu uma relação dinâmica e complexa com as condições históricas, políticas e culturais que interferiram direta e indiretamente na produção de sua obra literária. A investigação da trajetória intelectual e literária de Rodolfo Teófilo foi dividida em três capítulos: o primeiro capítulo relaciona o escritor ao contexto em que está inserida a sua obra ficcional, além do estudo de seu campo intelectual e literário; no segundo capítulo, estudamos a dinâmica dos processos de leitura e desleitura e, no terceiro capítulo, como se operou a construção do estilo naturalista-regionalista de Rodolfo Teófilo.

No primeiro capítulo, “Rodolfo Teófilo e o seu conturbado contexto”, situamos o autor no cenário urbano de sua atuação sócio-cultural: a cidade de Fortaleza do final do século XIX e início do século XX. Neste período, Fortaleza passou por uma série de reformas urbanas e sociais. O fator gerador deste novo quadro foi o rápido desenvolvimento econômico da capital cearense, em virtude da exportação da produção algodoeira durante as décadas de 1860-1870 (o algodão cearense abastecia o mercado norte-americano durante a guerra de Secessão).
           Aconteceu um florescimento material sem precedentes para Fortaleza, que poucos anos antes era apenas uma pequena cidade provinciana. O centro econômico era a Praça do Ferreira, que era cercada de lojas, armazéns e cafés com nomes ingleses e franceses.
No artigo “Vida noturna em Fortaleza”, da obra Coberta de tacos (1931), Rodolfo Teófilo nos revela que
Há cerca de quarenta annos não vou á Praça do Ferreira á noite. Dizem-me que é um ceo aberto; milagres da luz electrica. O café do Manoel Côco foi substituido, como os outros da praça, por algumas casas, em que se come e bebe no meio da rua. Os cinemas funccionam sempre cheios dando grandes lucros aos seus proprietários e corrompendo a mocidade[3]. (sic)
           Neste trecho, percebemos como Rodolfo Teófilo traduziu, através de sua obra literária, os paradoxos e as idiossincrasias do processo de modernização de sua cidade. Ele menciona a iluminação elétrica que já estava implantada na cidade, pois antes Fortaleza era iluminada por meio de lampiões a gás carbônico. Outro destaque são as constantes remodelações pelas quais a cidade passa, em prol da modernização, além de citar o cinema, importante aperfeiçoamento artístico e tecnológico que encantava a população cearense dede o início do século, embora, nas palavras de nosso autor, “corrompendo a mocidade.”
           O filósofo espanhol Ortega y Gasset e o pesquisador paulista Gilberto de Mello Kujawski apoiam o nosso debate a respeito da modernidade, definida como riqueza de vida e euforia de viver. A riqueza ou enriquecimento se deu quando o homem encontrou perante si um número exacerbado de possibilidades nas condições de vida, em comparação com o que ele possuía antes. A modernidade como enriquecimento, isto é, o alargamento da vida em inúmeras direções, estabelece a ruptura com o modo de vida tradicional. Os cidadãos de Fortaleza tinham uma ânsia de civilização, cultivando hábitos e padrões culturais europeus.
           Nossa pesquisa valeu-se também da obra de Eric Hobsbawn, A era dos impérios: 1875-1914, a qual nos oferece uma ampla discussão sobre veloz industrialização que ocorria no mundo àquela época e a corrida, entre as principais nações européias, em busca dos mercados na América, Ásia e África. No período da Belle Époque, as pessoas viviam num fascinante estado de euforia, exercendo uma crença radical na Razão, no Progresso e na Ciência, por meio da filosofia Positivista de Auguste Comte.
Enfim, o século XIX foi o mais materialista e otimista dos últimos séculos. O homem imaginava estar cultivando o paraíso do progresso na face da terra. Toda esta certeza na ciência e na razão seria abalada terrivelmente com as barbáries das duas guerras mundiais, segundo Gilberto de Mello Kujawiski: “através deste duro golpe, sobretudo, constatou-se na carne, de forma lancinante, que o progresso não passava de mistificação, e que o avanço tecnológico não correspondia, de modo algum, ao aperfeiçoamento moral da humanidade.”[4]
           Para a análise do contexto literário objeto do primeiro capítulo, utilizamos, de Dominique Maingueneau, O contexto da obra literária (2001). A idéia de contexto que o pesquisador defende não é a de uma noção de uma realidade externa à obra, mas compreende uma discussão das condições de enunciação textual que a nutriram. O contexto é entendido como um levantamento das condições de enunciação que nutriram a obra. O texto literário é resultado da própria gestão do seu contexto. O lingüista estrutura o seu conceito com a contribuição da teoria dos campos, do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002).
           Pierre Bourdieu, em As regras da arte (1996), define campo como um espaço em que ocorrem as relações entre os indivíduos, grupos e estruturas sociais, com uma dinâmica que obedece a leis próprias, assimiladas sempre pelas disputas ocorridas em seu interior. No interior da sociedade existem inúmeros campos: o literário, o cientifico, o intelectual. Contudo, todos esses campos relacionam-se de maneira problemática com o campo do poder, que corresponde ao espaço de lutas, por exemplo, no âmbito político e econômico: “Não é suficiente dizer que a história do campo é a história da luta pelo monopólio da imposição das categorias de percepção e de apreciação legitimas; é a própria luta que faz a história do campo; é pela luta que ele se temporaliza."[5]
           Percebemos que o campo é um espaço de conflitos, de jogo social e de concorrência. O escritor não fica indiferente ao campo, pois sua obra literária surge das tensões do campo literário. Para inserir-se nos diferentes campos (intelectual, do poder, literário) era necessário que os indivíduos realizassem o acúmulo de cultura letrada. Esta inserção era bastante problemática para os indivíduos que não faziam parte do campo do poder, pois sabemos que no Ceará daquela época, especificamente Fortaleza, mesmo passando por processos de modernização, a aquisição de educação formal era privilegio para poucos.
O desenvolvimento intelectual de nossa província é relacionado ao desenvolvimento material ocorrido nas décadas de 1860 e 1870, pelo pesquisador José Ramos Tinhorão na obra A província e o Naturalismo:
O aparecimento dos numerosos movimentos intelectuais no Ceará, surgidos à sombra de academias, gabinetes de leitura e sociedades literárias – desde a Academia Francesa, de 1872, até a Padaria Espiritual, de 1892 – prende-se, fundamentalmente, ao advento de uma nova classe média nas principais cidades da província e, acima de tudo, em Fortaleza.[6]
           O desenvolvimento econômico deu surgimento a uma nova classe social – a classe média. A classe média fortalezense era formada por amanuenses, empregados em escritórios de grandes firmas, estudantes, militares, profissionais liberais e pequenos comerciantes. Os membros dessa nova camada social aspiravam participar do campo político e intelectual da cidade. Os novos escritores lutam para se inserir no interior do campo literário, tentando romper com os elementos dominantes que pactuam com a continuidade de sua própria obra. Portanto, para a referida pesquisa, estudamos como Rodolfo Teófilo marcou a sua época.
As conclusões provisórias que atingimos no estudo deste capítulo referem-se ao posicionamento paradoxal de Rodolfo Teófilo nos diferentes campos: no âmbito do campo do poder, ele era marginalizado, pois foi amplamente perseguido pelos membros e colaboradores da Oligarquia Accioly (1896-1912). Por desafiar a oligarquia, foi visto pela intelectualidade cearense como símbolo da oposição. Na esfera da ação, sua intervenção se dava através do combate às epidemias de varíola e cólera, da campanha contra o alcoolismo, da participação no movimento abolicionista, pela defesa da construção de açudes e da reforma agrária, pela assistência aos flagelados das secas.
Através das letras, da obtenção de cultura, ele penetra nos campos literário e intelectual. Nestes campos, Rodolfo Teófilo adquire destaque no espaço cultural da cidade de Fortaleza e no âmbito nacional, como literato e historiador das secas. No âmbito literário, o seu maior mérito foi de inaugurar o regionalismo naturalista em nosso estado, com o romance A fome (1890). O seu propósito poético era pintar, com as tintas da verdade, os dramas e as alegrias do povo cearense.
No segundo capítulo, “O leitor Rodolfo Teófilo”, abordamos a posição de Rodolfo Teófilo como leitor. Pesquisamos qual foi o rol de leituras que configuraram a base do seu cientificismo e de sua visão estética. Estudamos as principais influências do escritor, organizadas em dois eixos: as leituras de mocidade e as leituras relacionadas à sua formação e ao ofício de farmacêutico.
No interior de sua antiga residência, havia um amplo gabinete de estudos, com estantes repletas de livros e a sua escrivaninha, onde dedicou bastante do seu tempo às leituras. O próprio autor nos descreve que existiam “sobre a escrivaninha, os bustos de Homero, Lamartine, Jenner e a imagem de S. Vicente de Paulo.”[7]
O móvel citado está conservado hoje no Museu do Ceará. Além da descrição transcrita acima, também existem duas fotos de Rodolfo Teófilo ao lado de sua escrivaninha. Este espaço de produção intelectual, documentado pelo próprio poeta, textual e iconograficamente, possui uma enorme importância para a nossa compreensão de sua condição de leitor. Os bustos citados representam as idéias e os padrões de vida com que ele mais se identificava: o poeta épico grego Homero, o poeta republicano francês Lamartine, o cientista inglês que descobriu a vacina contra a varíola, Edward Jenner e o sacerdote francês que devotou a sua vida à caridade, São Vicente de Paulo.
          Em relação à investigação destas leituras que formaram a visão de mundo do escritor, adotamos o conceito crítico de influência, exposto por Harold Bloom, professor e crítico norte-americano. Ele nos mostra que todo poema ou obra literária em si é uma resposta a outro texto literário, numa angustiosa tentativa de ser original. Segundo Harold Bloom: “A história da poesia... é considerada como indistinguível da influência poética, já que os poetas fortes fazem a história deslendo-se uns aos outros, de maneira a abrir um espaço próprio de fabulação.”[8] A noção de angústia da influência é sustentado por uma visão da literatura como um espaço de constantes lutas. O poeta-forte não é aquele que é submisso à Tradição, mas o que a desafia, que combate os precursores, a fim de subjugá-los.
           O seu interesse está em provar que nenhum texto tem sentido isolado. Todo texto é uma leitura, sempre uma resposta a outro texto. Portanto, a angústia da influência é uma teoria da desleitura, pois “Todo poema é um desvirtuamento de um poema-pai. Um poema não é a superação de uma angústia, mas a própria angústia”[9].
           A jornada do escritor para tornar-se um “poeta-forte” é descrito através de um ciclo de seis movimentos revisionários, calcados nas idéias de desapropriação (misprision). O primeiro movimento é o CLINAMEN, que é a desleitura propriamente dita. É o conceito central da teoria de Bloom, pois significa a descrição mais geral do desvio de um poeta em relação ao seu antecessor. TESSERA é a complementação e antítese do precursor na obra do poeta efebo. KENOSIS é um processo de descontinuidade em relação ao precursor, é um mecanismo de ruptura semelhante aos mecanismos de defesa que a nossa psique emprega contra as compulsões de repetição. DEMONIZAÇÂO ou o movimento na direção de um Contra-sublime próprio, como uma reação ao sublime do precursor. O poeta não é possuído pelo demônio, tornando-se forte, ele próprio se transforma num demônio. ASKESIS ou sublimação poética. É uma aspiração a um pleno estado de isolamento, semelhante a ascese, prática dos xamanistas pré-socráticos, como Empédocles. O último movimento, APOPHRADES, é o retorno dos mortos, isto é, dos poetas mortos. Sustentado pelo peso de uma solidão imaginativa, o novo poeta forte se nutre da tradição (retorno dos poetas fortes como alimento poético) para criar uma poesia nova e singular.
Então, o poema não é mais visto como um objeto, mas como um movimento, como uma postura em relação a um poema ou poemas anteriores. Logo, a poesia é uma forma de crítica. Arthur Nestrovski, no prefácio da primeira edição brasileira da Angústia da influência, declara que “o paradigma da criação literária passa a ser a leitura, que é onde se originam igualmente a poesia e a crítica.” O desvio criativo que dá origem a uma poesia singular é definida como desleitura ou desapropriação poética.O conceito de angústia da influência é de suma importância para a compreensão de Rodolfo Teófilo como literato. Percorrendo a sua obra, percebemos em cartas, crônicas, reportagens com declarações do autor considerando-se um “mau poeta”, ou muito distante de atingir o nível estético de José de Alencar ou de Aluísio de Azevedo. Esta angústia o acompanhou durante toda a vida e interferiu radicalmente na sua criação poética.
Investigamos o primeiro ciclo da formação do escritor no colégio Atheneu Cearense, onde adquiriu uma formação clássica e humanística. Na adolescência, ao seguirmos os passos de suas leituras românticas, percebemos que Casimiro de Abreu (1839-1860) foi uma poderosa voz que ecoou em sua poesia. Quando trabalhava como caixeiro no comercio de Fortaleza, no final da década de 1860, ele se sentia injustiçado por passar por tantos sofrimentos, como a ausência dos pais e por ser constantemente humilhado pelos patrões. Rodolfo era ingênuo e sonhador e dizia ter um coração de poeta.
Já maduro, Rodolfo tentou desqualificar a ‘doença romântica’ que o havia possuído na sua adolescência:
A leitura quotidiana da ‘Primaveras’ ia-me matando. ‘A noite na taberna’, de Álvares de Azevedo, fez grande numero de estróinas e bêbedos. Quando cursei a Academia da Bahia, estava ainda muito em moda este poeta e também Castro Alves com as suas bombas. Eu já tinha mais idade, melhor senso do que no tempo das ‘Primaveras’ e, sobretudo, uma verdadeira e idiosyncratica ogeriza, como ainda hoje tenho, ao álcool, ao jogo e ás multidões. Foi o que me salvou de ser um bêbedo, porque um companheiro de casa, muito meu affeiçoado, de quando em quando fazia noites na taberna.[10]
Como poeta, Rodolfo Teófilo escreveu poemas sobre o seu amor à terra e ao povo cearense, além de cantar a saudade. As imagens e temáticas poéticas de Casimiro eram recorrentes na produção poética de Rodolfo Teófilo. O poema “Ao por- do-sol”, do livro Telésias (1913) contem a temática da poesia de dicção romântica de Rodolfo Teófilo: a morte das ilusões da infância e da juventude.
Também salientamos o processo de aquisição e defesa da metodologia experimental, empregada na estruturação de seus textos em prosa. A sua formação cientificista ocorreu na Faculdade de Farmácia da Bahia, curso que fazia parte da Faculdade de Medicina, no início da década de 1870. Na referida instituição, ele entrou em contato com as idéias antropológicas do Conde de Gobineau e da Crinimologia de Cesare Lombroso, além da teoria da Seleção Natural, de Charles Darwin. Também trouxemos à baila a desleitura que Rodolfo Teófilo efetuou em relação ao Naturalismo, tanto brasileiro, quanto europeu, além da famosa polêmica literária com Adolfo Caminha, onde, cada um, à sua maneira, defendeu sua visão da escola naturalista.
Surgiu na revista Moderna (1891) um artigo de cunho impressionista que realizava um ataque violento ao romance de estréia de Teófilo. “... enquanto o Sr. Teófilo, que é nortista, que sempre residiu em sua terra, que assistiu de vista todas aquelas cenas canibalescas e incríveis de miséria e fome, não conseguiu dar senão páginas sem estilo, sem arte, sem verdade às vezes..." (Caminha, 1999.) Além de acusar Rodolfo Teófilo de pintar cenas sem verdade, afirma que o tema nas mãos de José de Alencar (1829–1877) ou Aluisio de Azevedo (1857–1913) teria mais estilo, grandeza e veracidade.
Rodolfo Teófilo se defende das acusações de Adolfo Caminha atacando o romance dele, A normalista (1893), através das páginas do jornal o Pão. Notamos no referido trecho que Rodolfo Teófilo não estava alheio à situação da escola naturalista, nacional ou estrangeira. Rodolfo Teófilo utiliza a epígrafe de Balzac como argumento para explicitar o desvio que Adolfo Caminha fizera do seu mestre: “Uma das obrigações as quais o historiador dos costumes não deve jamais faltar é de forma alguma desgastar a verdade através de arranjos em aparência dramática, sobretudo, quando a verdade tomou a si a pena (o trabalho) de se tornar romanesco.”[11]
Da epígrafe, tomemos a expressão “historiador dos costumes” como sinônimo de romancista. O conselho de Balzac é o de que mesmo escrevendo um texto ficcional, o modelo sempre é a verdade, não a comprometendo através de arranjos romanescos. Rodolfo Teófilo interpreta o romanesco como romântico. Então, o crítico acusa Adolfo Caminha de trair o conselho da própria epígrafe de seu livro, que deveria ser o seu direcionamento. Ele também critica o escritor por não se aprofundar nos conhecimentos científicos para escrever o romance.
Com a investigação empreendida neste capítulo, concluímos que a polêmica entre Rodolfo Teófilo – Adolfo Caminha se deu pela posse da verdade e pela adequada filiação ao Naturalismo. Apesar de ambos filiarem-se à nova escola, percebemos diferenças marcantes entre eles: Adolfo Caminha defendia o romance como documento social, mas as suas influências mais profundas eram Eça de Queirós e Gustave Flaubert; Rodolfo Teófilo adotou o método experimental na escritura de suas obras, porém radicalizou os seus ditames. Ele exacerbou a metodologia do romance experimental e a usou para estudar e denunciar as mazelas e os dilemas do povo cearense. Ele complementou Zola, ao aplicar os seus conhecimentos científicos a uma realidade social, à qual o autor francês dificilmente teria acesso: o sertão nordestino.
No terceiro e último capítulo, “Rodolfo Teófilo – a construção de um estilo”, estudamos o processo de superação das influências de leitura de Rodolfo Teófilo, efetuando um atento exame da sua produção ficcional, iniciada com A fome em 1890, culminando com O paroara (1899). Para esse estudo, empregamos as categorias de estilo, escritura e linguagem por Roland Barthes, em O grau zero da escritura (1974). Neste capítulo, foi enfatizado como Rodolfo Teófilo desenvolveu uma “autonomia” de cunho formal, isto é, construiu sua identidade literária.
Numa série de ensaios, Roland Barthes postulou a idéia de uma realidade formal entre a língua e o estilo e independente de ambos. A escritura seria a terceira dimensão da forma. Ele nos explica que os escritores do século XIX possuíam uma idéia da Literatura como representação da realidade. Mesmos os autores mais realistas tinham a crença de que através de uma escritura, colocariam a realidade no papel. Ou seja, pretendiam uma idealização do real. O texto literário, trazendo este real transformado, tinha o mundo como ponto de partida.
A partir do momento em que os escritores como Stéphane Mallarmé com o poema Un coup de dés (Um lance de dados, de 1897) iniciaram o questionamento da Literatura de uma perspectiva referencial, inclusive a escritura clássica dilacerou-se e passou a ser, para Barthes “uma problemática da linguagem.”[12] A literatura modernista, que estava nascendo, criou uma linguagem mais turva, mais opaca. A arte deixou de ser uma tentativa de imitar o mundo. A consciência do fazer literário levou os escritores a fazerem a linguagem voltar-se para si. O crítico nos informa que o engajamento formal (escritura) não se dá com o mero conhecimento das normas gramaticais, do uso retórico da língua. Também não acontece com o simples registro no papel de estados da alma, como num diário. A escritura é uma função, ela surge no ato de enunciação, que é, ao mesmo tempo, uma modulação da fala e uma modalidade ética.
Escritores de uma mesma época dispõem da mesma língua, vivem as mesmas circunstancias histórica, porém podem ter escrituras totalmente diferentes, porque a escritura depende da maneira como o escritor vive a sua História e faz uso da língua. No final do século XIX, na França, os indivíduos dispunham do código lingüístico francês, mas viviam naquela sociedade escritores tão díspares quanto o naturalista Émile Zola e o simbolista Stéphane Mallarmé.
Leyla Perrone-Moisés, a maior divulgadora das idéias barthesianas no Brasil, com o livro Texto, crítica, escritura (1973), ajuda-nos a esclarecer esta categoria, explicando que “ escritura é a relação que o escritor mantém com a sociedade, de onde sua obra sai e para a qual se destina, a reflexão do escritor sobre o uso social de sua forma e a escolha que ele assim assume.”[13]
Para compreender a trajetória ficcional de Rodolfo Teófilo, também nos apoiamos na discussão do conceito de “estilo tropical”, proposto por Araripe Júnior no ensaio “Estilo tropical. A fórmula do naturalismo brasileiro” (1888). Para reforçar a pesquisa sobre o referido assunto, utilizamos as reflexões de Roberto Ventura, em Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1991), pesquisa de levantamento minucioso sobre o debate empreendido pela intelectualidade brasileira, do final do século XIX, em torno da interpretação das singularidades da cultura brasileira.
No ensaio, anteriormente referido, Araripe Júnior afirma:
O tropical não pode ser correto. A correção é o fruto da paciência e dos países frios; nos países quentes, a tensão é intermitente. Aqui, aonde os frutos amadurecem em horas, aonde a mulher rebenta em prantos histéricos aos 10 anos, aonde a vegetação cresce e salta à vista, aonde a vida é uma orgia de viço, aonde tudo é extremoso...[14]
O estilo nasce de um estranhamento do temperamento do individuo nos embates com a tradição literária. Essa perspectiva é de base eurocêntrica, porque os estudiosos desta época associaram o ambiente e o clima em que viviam a uma idéia de superioridade e de civilização. Araripe Júnior constrói uma imagem (herança, sobretudo, das leituras européias) do Brasil como uma imensa selva, onde a “vida é uma orgia de viço”. O clima quente excita o homem, tornando-o hiperativo e lascivo.
           Um dos primeiros traços que caracterizam o estilo brasileiro é a incorreção. O crítico cearense explica que, ao emigrar para o Brasil, o Naturalismo passou por uma modificação profunda. O Naturalismo, ao entrar pelo Trópico de Capricórnio, partilhou das alucinações provocadas pela lascívia quente da terra brasílica e se tornou uma planta exótica. Para Araripe Júnior “A fórmula que melhor nos cabe para exprimir a nova fase literária não pode ser senão esta – o naturalismo brasileiro é a luta entre o cientificismo desalentado do europeu e o lirismo nativo do americano pujante de vida, de amor, de sensualidade.”[15]
        Neste conflito por uma singularidade nativista, tropical é o estilo que define a literatura daquele período. O nosso naturalismo é um naturalismo quente, em oposição à escola naturalista européia, fria, decadente. Segundo Araripe Júnior, Aluísio de Azevedo seria o corifeu do naturalismo brasileiro, não somente um mero copiador servil da doutrina de Zola. Aluísio de Azevedo, a partir da força de sua índole, escreveu romances que realizaram a tropicalização do naturalismo francês.
           Já mencionamos que o próprio Rodolfo Teófilo considerava-se um escritor “menor”. Ele não foi um autor que dedicou a sua vida inteiramente às Letras. Rodolfo Teófilo foi farmacêutico, sanitarista, abolicionista, historiador, jornalista, industrial e poeta. Portanto, a Literatura era uma complementação de sua atividade intelectual, que era ampla e diversificada. Porém, mesmo não sendo um escritor “profissional” ou um artesão da palavra, em sua trajetória ficcional, ele desenvolveu um estilo próprio.
           O romance de estréia, A fome, em sua primeira edição, continha como subtítulo “cenas da seca do Ceará”. O próprio autor considerava a obra apenas como um documento da terrível seca de 1877, do qual foi testemunha privilegiada. O livro seria uma espécie de reportagem de denúncia, de teor cientificista, por mais que o seu enredo e estruturação narrativa ainda possuíssem ecos românticos. A fome é uma obra de predominância naturalista. Porém, traz diversos resquícios das leituras românticas de Rodolfo Teófilo. A desapropriação poética que Rodolfo Teófilo realiza em A fome a torna singular, pois o enredo, os traços da caracterização dos personagens e a estrutura narrativa do texto remetem às ficções românticas, mas a denúncia social, as descrições cruas, o cientificismo a caracterizam como naturalista.
           Rodolfo Teófilo foi constantemente atacado em virtude de sua linguagem despojada e sem requinte. Mesmo sendo um romance de estréia e por falta de uma maior experiência ficcional, o autor tinha consciência de suas limitações. Ele não poderia escrever um livro de tão grave denuncia com um estilo adornado, nos moldes poéticos de um José de Alencar, por exemplo. Por isso que ele hesitou, num primeiro momento, em considerá-lo um romance. A missão intelectual gritou mais forte no coração do prosador estreante. Temos de convir que a maior motivação da escritura do romance A fome foi a da denúncia sócio-política. Portanto, concluímos que o estilo de Rodolfo Teófilo no referido texto é uma junção de cientificismo, de denuncia social e de regionalismo.
           Através de vários exercícios literários, Os Brilhantes (1895), Maria Rita (1897), o romancista demonstra o seu interesse no aperfeiçoamento da sua escrita, não só no quesito histórico ou político, mas, especialmente, no âmbito literário. Essa conscientização estética encaminha Rodolfo Teófilo para o processo da escritura. Nos dois primeiros romances, a escritura foi eclipsada pelo apelo social e moralizante. Em Os Brilhantes, Rodolfo Teófilo tentou realizar um estudo psicológico da gênese do cangaço no sertão nordestino, mas este objetivo falha, pois a origem do banditismo do protagonista, Jesuíno Brilhante, é de ordem determinista, oriunda da herança genética. Em Maria Rita, adensa a sua ótica regional, apesar do caráter didático da obra, calcado num desejo de descrever o caráter da História, da Geografia e da cultura do Ceará colonial.
           O romancista, embora também panfletário, ainda não conseguira dar um acabamento poético mais definido a seus romances. A construção de sua escritura aconteceu quando ele modificou o seu projeto de escrita. O autor atinge a sua maturidade como ficcionista com a novela Violação (1898) e o romance O paroara (1899).
Violação é a melhor mostra da escritura naturalista de Rodolfo Teófilo, a qual se construiu na junção de um tema sexual a um tema macabro, gerando a terrível cena de necrofilia que encerra a narrativa. Segundo Otacílio Colares “É este um dos livros mais chocantes de Teófilo, senão um dos mais da ficção brasileira de todos os tempos.”[16]
No romance O paroara, Rodolfo Teófilo atinge o ponto mais alto de sua obra literária, quando a preocupação cientificista deixou de ser o foco central de sua escritura e ele privilegiou o regionalismo, superando as tensões românticas, encontradas no romance de estréia. O Romantismo cede lugar ao Realismo.
        A sua linguagem torna-se mais simples, descrevendo as cenas como se fossem observadas diretamente da realidade, deixando de lado os abusos da linguagem científica e se concentrando nos aspectos regionalistas. Pela autenticidade das descrições da paisagem sertaneja e da selva, pela intensidade trágica, pela denúncia do drama dos cearenses, o romance adquire repercussão internacional. Oliveira Viana, ministro brasileiro da Bélgica, traduziu para o francês alguns trechos d’O paroara, publicando-os na revista francesa “Revue d’Europe et Amérique.” O crítico francês André Beaunier tece favoráveis críticas no jornal Le Fígaro. Os comentários do crítico repercutem em Fortaleza, para surpresa do escritor.
         Rodolfo Teófilo não trabalhou a linguagem de maneira retórica e adornada, pois se dedicou a uma literatura compromissada com a verdade e com um senso agudo de justiça. O seu estilo é composto por matrizes européias, oriundas da sua formação em Farmácia. Essas matrizes são o Positivismo, o Naturalismo, o determinismo e o cientificismo.
           O objetivo da publicação do primeiro livro (A fome) é mais político do que literário. Rodolfo Teófilo passa de intelectual a escritor quando começa a ganhar maior confiança em seu fazer literário. A escritura surge com a radicalização de seu estilo, afastando-se do cientificismo, e detendo-se no regionalismo. O regionalismo vai ser o traço diferenciador dos romances de Rodolfo Teófilo, seu traço de tropicalidade, na concepção de Araripe Júnior.
           Com os resultados obtidos com a proposta desta pesquisa, podemos concluir que a singularidade do naturalismo de Rodolfo Teófilo acentua-se através da presença constante da “cor local”, cujo objetivo era “photografhar a nossa época, os costumes, índole e civilisação do nosso povo.” (sic) [17] A tropicalidade do estilo de Rodolfo Teófilo se formou devido ao seu enorme apego à “terra da luz”, a imagem de um escritor que viveu e lutou pelo Ceará, apesar dos graves problemas políticos, das intempéries climáticas e por sua visão antropológica e científica do povo cearense. Numa tentativa de sintetizar a escritura de Rodolfo Teófilo, poderíamos defini-la como regionalista científico-tropical.


[1] Mestre em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará. (2011), com pesquisa financiada pela FUNCAP.

[2] Professora associada II, no Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará, coordenadora do grupo de pesquisa “Bibliotecas pessoais: escritores, historiadores e críticos literários”.

[3]  TEÓFILO, Rodolfo. Coberta de tacos. Fortaleza, Moderna, 1931. p. 103.
[4]  KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A crise do século XX. São Paulo: Ática, 1994. p. 14.
[5] BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 181.
[6] TINHORÂO, José Ramos. A província e o naturalismo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966. p. 21.
[7]  TEÓFILO, Rodolfo. O Cunduru. Fortaleza: Minerva, 1910. p. 44.
[8]  BLOOM, Harold. A angústia da influência. Uma teoria da poesia. Trad. Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago editora, 1991. p. 33.
[9]  Idem, ibidem 1992, p 132.
[10] TEÓFILO, Rodolfo Scenas e typos. Edição fac-similar. Fotaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 2009. p. 70.
[11] A citação original em francês encontra-se no exemplar d’O Pão Nº 19, de 1 de Julho de 1895: “Une dês obligations auxquelles ne doit jamais manquer l’historien dês moers, c’est de ne point gâter le vrai par dês arrangements en apparence dramatiques, surtout quand le vrai a pris la peine de devenir romanesque.” (sic)
[12] BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos/O grau zero da escritura. Trad. Heloysa de Lima Dantas, Anne Arnichand e Álvaro Lorencini.São Paulo: Cultrix, 1974. p. 118.
[13]  PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1973. p. 34-35.
[14] ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Araripe Júnior: teoria, crítica e história literária (Seleção e apresentação Alfredo Bosi). Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1978. p. 126.
[15]  Idem, ibidem, 1978, p. 127.
[16] COLARES, Otacílio. Lembrados e esquecidos. Fortaleza: Imprensa universitária, 1975. v. I. p. 45.
[17]  TEÓFILO, Rodolfo Varíola e vacinação do Ceará. Fortaleza: Jornal do Ceará, 1904. p. 117.

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